Em primeiro lugar, quando pensamos em “justiça”, tendemos a associá-la automaticamente ao que é legal. Contudo, a história e a experiência cotidiana mostram que nem tudo que é legal é justo. Pense, por exemplo, em leis que sustentaram regimes autoritários ou sistemas de exclusão social. É nesse ponto que entra o filósofo do direito H. L. A. Hart, cuja distinção entre lei e moralidade ainda é fundamental para compreendermos os dilemas éticos do mundo moderno. Atualmente, em tempos de polarização e debates acalorados sobre liberdade, direitos e deveres, entender essa distinção é mais urgente do que nunca.
A Lei Como Sistema de Regras
Hart, em sua obra clássica The Concept of Law (1961), propõe que o direito deve ser compreendido como um sistema de regras que organiza o comportamento em sociedade. Assim como um jogo possui regras que definem o que é permitido ou proibido, o sistema jurídico estabelece limites e possibilidades. Para Hart, essas regras são divididas em dois tipos: regras primárias, que impõem deveres, e regras secundárias, que conferem poderes (como legislar ou julgar).
Contudo, Hart critica a ideia de que uma lei é válida apenas se for moralmente justa. Ele argumenta que o direito é um sistema autônomo que pode existir independentemente da moral. Isso não significa que devemos obedecer cegamente toda e qualquer lei, mas sim que legalidade e moralidade são categorias diferentes. Bem como um jogo pode ter regras estranhas mas ainda ser jogado corretamente, um sistema legal pode conter leis injustas e ainda assim ser um sistema funcional.
O Problema das Leis Injustas
Agora, o que fazer quando a lei entra em conflito com nossos princípios morais? A resposta de Hart é complexa. Ele reconhece que há momentos em que o dever moral exige desobedecer à lei. Contudo, sua contribuição é destacar que a análise legal deve ser separada da avaliação moral. Por exemplo, podemos reconhecer que uma lei é válida dentro do sistema jurídico de um país, mesmo que discordemos profundamente dela do ponto de vista ético.
De maneira idêntica à abordagem de Max Weber sobre a “ética da responsabilidade“, Hart nos alerta que sistemas legais têm dinâmicas próprias, e que o papel do jurista ou legislador é, antes de tudo, compreender essas dinâmicas. Não se trata de ignorar a moral, mas de evitar confusão entre dois campos distintos da experiência humana.
Hart vs. Dworkin: A Moral Deve Fazer Parte da Lei?
Conforme o debate avançou, Hart enfrentou críticas de autores como Ronald Dworkin, que defendia que os princípios morais fazem parte do direito. Dworkin sugeria que um juiz não deve aplicar a lei apenas como um conjunto de regras, mas também considerar princípios morais implícitos. Assim como Hart via a lei como um jogo estruturado, Dworkin via a lei como um processo interpretativo, onde valores como igualdade e dignidade têm peso.
Essa discussão permanece viva. Por exemplo, no debate sobre direitos civis, é comum vermos decisões judiciais que apelam a princípios de justiça mesmo quando a legislação é ambígua. Isso mostra como, na prática, direito e moralidade nem sempre estão separados. Contudo, a distinção proposta por Hart continua sendo um ponto de partida essencial para refletirmos sobre quando e como devemos desafiar a legalidade em nome do justo.
A Psicologia Moral e a Percepção da Lei
Apenas recentemente, a psicologia moral começou a investigar como as pessoas julgam atos legais e morais. Estudos como o de Haidt (2001), com sua teoria dos fundamentos morais, sugerem que nossa percepção de “certo” e “errado” está ligada a intuições emocionais mais do que a raciocínio deliberado. Logo, podemos nos revoltar contra uma lei que nos parece injusta mesmo sem conseguir explicá-la racionalmente.
Isso reforça a ideia de que lei e moralidade não são idênticas. Conforme Hart argumenta, entender essa diferença nos permite criticar leis injustas com mais clareza e objetividade. Se misturamos os conceitos, corremos o risco de tornar a lei arbitrária e a moral autoritária.
Por Que Isso Importa?
Pode parecer um debate teórico distante, mas ele afeta questões cotidianas: devemos seguir uma lei que discrimina? É correto punir quem ajuda imigrantes ilegais por razões humanitárias? Bem como no dilema clássico de Antígona, que enterra o irmão contra a ordem do rei, muitos de nós enfrentamos conflitos entre o que é mandado pela lei e o que é ditado pela consciência.
Definitivamente, Hart nos fornece ferramentas para entender essas tensões sem cair em simplismos. Ele nos lembra que, para construir uma sociedade mais justa, precisamos tanto de boas leis quanto de uma moralidade ativa e questionadora.
Conclusão
Logo, a contribuição de H. L. A. Hart não está apenas nos tribunais ou na teoria do direito, mas também em nosso cotidiano ético. Entender a distinção entre legalidade e moralidade não nos torna mais cínicos, mas mais conscientes. Ao reconhecer que nem toda lei é justa, abrimos espaço para o questionamento e a evolução social.
Se você gostou desse tema, não deixe de conferir o artigo “O Paradoxo da Escolha: Por Que Ter Muitas Opções Nos Deixa Mais Infelizes (Segundo Sartre e Psicologia Moderna)“ e continue explorando como a filosofia pode iluminar nossos dilemas contemporâneos.